Fracassos esportivos expõem jogadores a situações degradantes ou, no mínimo, desconfortáveis. Não se trata da crítica ao gol perdido, ao gol contra, à jogada mal executada, a rompantes de individualismo que minam o jogo coletivo. O Brasil, sempre habituado a disputar competições como inconteste favorito, a confundir confiança com soberba, não aprendeu a lidar com a derrota no futebol. A ânsia por bodes expiatórios geralmente desemboca em reações violentas que fogem – e muito – à avaliação do desempenho em campo, como os xingamentos racistas sofridos por Fernandinho e Gabriel Jesus após a eliminação para a Bélgica na Copa do Mundo.
Há quem defenda que, por ganharem muito dinheiro, astros da bola mereçam ouvir qualquer tipo de insulto, de forma passiva e resignada. Entretanto, salário e conta bancária não configuram salvo-conduto para linchamento, muito menos para ofensas preconceituosas. É preciso estabelecer limites bem rígidos entre o questionamento ao atleta e a depreciação do ser humano por trás da figura pública. Diversas críticas a jogadores carregam tons de xenofobia, racismo, inveja e aversão a pessoas de origem humilde que fazem fortuna com o futebol. O preconceito se esconde em linhas sutis, solidificando estereótipos com base em atitudes que não são exclusivas da classe futebolística.
Primeiro, pela necessidade de patrulhar quanto ganham e como gastam seu dinheiro. Jogadores habitam um universo que gira cifras milionárias, turbinadas ano após ano, sendo que suntuosas frações desse montante servem para irrigar negociatas movidas por propina e esquemas de lavagem de dinheiro, como atestam os escândalos de corrupção da FIFA. É natural que os verdadeiros protagonistas do espetáculo requeiram sua legítima fatia do bolo e se deixem levar pelas propostas irrecusáveis da China ou do Catar, já que a vida útil de um atleta é bem mais curta que a voracidade de príncipes endinheirados ao inflacionar o mercado com seus brinquedos em formato de times.
Virou moda chamar jogador de mercenário e, mais recentemente, de mimado por qualquer coisa. “Seleção mimada” ou “geração nutella” se tornaram expressões batidas nas arquibancadas desde a última Olimpíada, quando a equipe sub-23 do Brasil chegou a receber vaias com apenas 20 minutos de jogo. Torcedores estão mais exigentes. Talvez pelo preço abusivo dos ingressos em arenas elitizadas, pelo afastamento dos ídolos patrocinado pela insensibilidade dos cartolas ou apenas pela mania de descontar as próprias frustrações sobre uma personalidade de chuteiras. O fato é que a maioria dos jogadores teve uma trajetória com mais adversidades e menos privilégios que boa parte dos críticos que usam o suposto excesso de mimos como argumento para atacá-los.
No Brasil, assim como em várias parte do mundo, as categorias de base estão repletas de histórias de meninos pobres que veem o futebol como o trampolim para um salto na pirâmide social. Garotos que saem cedo de casa, abrem mão do convívio com a família – isso quando já não foram abandonados por ela –, e de aproveitar a adolescência para se converter em mercadoria na mão dos clubes, que os confinam em concentrações sob a tutela de empresários sedentos pelo lucro de uma futura negociação. Há alguns anos, Marco Aurélio Cunha, conselheiro renomado do São Paulo que hoje trabalha para a CBF, manifestou seu descontentamento com o perfil de jogadores que o clube estava formando ao oferecer boas condições no centro de treinamento em Cotia: “Cria-se o jogador ‘filhinho de papai’: bem tratado, mas mal-acostumado”. Uma visão típica dos dirigentes, que não entendem como obrigação a oferta de uma estrutura que vá além de gramados bem aparados a crianças e adolescentes a serviço de seus clubes.
Para se tornar profissionais consagrados, jogadores têm de superar as barreiras da pobreza, o filtro implacável que deixa a maioria pelo caminho, sem formação escolar nem perspectiva de futuro, e a ganância de uma indústria que exige sua juventude em troca de uma chance de triunfar com a bola nos pés. Escolhas? Apesar das ilusões cativadas pelo futebol, muitos dos que demonstram algum talento em campinhos de terra batida na infância são praticamente empurrados para esse trajeto, seja pela família, que aposta todas as fichas da ascensão social no prodígio da casa, seja por agentes convictos de terem encontrado a nova mina de ouro. Renunciar à jornada nem sempre é uma escolha. A carreira de jogador, embora idealizada como um céu de brigadeiro, é bem mais tortuosa que a rotina sedutora vendida pelos perfis de Instagram dos poucos que desfrutam do estrelato.
“Jogadores não costumam se engajar no debate político porque, nas raras vezes que o fazem, quem discorda de suas posições se apressa em tachá-los como seres manipulados”
Por fim, também é usual que se aplique a palavra “mesquinho” para desqualificar o comportamento dos jogadores. São recriminados por ostentar relógios de luxo, posar com suas Ferraris, ousar no corte de cabelo, frequentar as mais badaladas vitrines da Europa, como se essa não fosse a norma-padrão da elite brasileira, mas sim uma atitude restrita à casta que constrói seu império com os rendimentos do futebol. São cobrados por raramente levantar bandeiras e apoiar causas sociais, como se todos os profissionais de outras áreas cumprissem à risca o papel de cidadão fora de seus postos de trabalho. Nomes como Sócrates e Paulo André, ícones no panteão dos jogadores engajados, vieram de famílias de classe média. O futebol não era a única tacada que dispunham para ganhar a vida, ao contrário dos “mimados e alienados” que, se não tiram a sorte grande de assinar um contrato com clube de ponta, são obrigados a conciliar a aventura nos gramados com bicos em horas vagas para prover o sustento da família.
Muito dessa pecha se deve à cadeia repressiva do futebol, que praticamente obriga o atleta a seguir um estrito código de conduta para se capitalizar como um produto. Jogadores evitam voltar às suas origens para não correr o risco de serem injustamente associados à criminalidade no noticiário do dia seguinte e, assim, garantir o patrocínio da marca que vislumbra ricaços com ojeriza à favela. Não desenvolvem vínculos afetivos com os torcedores dos clubes que os formaram porque são exportados cada vez mais cedo para equipes estrangeiras. Não se reaproximam da torcida quando vestem a camisa da seleção porque, para manter seu lucro milionário, a CBF prefere marcar amistosos em Londres ou Nova Iorque e transportá-los em helicópteros durante passagens-relâmpago pelo país. Não costumam se engajar em campanhas eleitorais nem no debate político porque, nas raras vezes que o fazem, quem discorda de suas posições se apressa em tachá-los como seres manipulados.
Parte-se do pressuposto de que as emoções dos jogadores são inversamente proporcionais ao patrimônio que acumularam. É como se, por terem alcançado uma condição financeira superior à da maioria dos brasileiros, eles não conseguissem mais se indignar com a derrota, sofrer pelo gol impedido no último minuto nem nutrir um sentimento de frustração semelhante ao do torcedor. Edu Gaspar, coordenador da seleção, pisou na bola ao tentar defender o principal jogador brasileiro dizendo que “não é fácil ser o Neymar”. Ofereceu munição aos que o rotulam como “garoto mimado” e reforçou o estereótipo que não atinge somente o craque. A definição mais precisa seria: “não é fácil chegar ao patamar de um Neymar”. Uma parcela das críticas que ele e companheiros de profissão recebem, pelo desempenho e postura em campo, faz parte do jogo. Outra, que se propõe a medir o caráter dos jogadores pelo status social, apenas reflete o preconceito de classe tão corriqueiro nas análises do futebol.
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